terça-feira, março 23, 2010

Sombras e espelhos

Acontecimentos recentes lançaram-me em mais uma de minhas jornadas pela minha própria história. Depois, numa conversa com a Genza, sacerdotisa do templo das Velhas Quase Virgens, acabei concluindo vários pontos visitados ao longo dos caminhos de mim mesmo. Alguns dos frutos dessa expedição serão registrados aqui.
Depois de quatro anos de vida, comecei a enfrentar um dos maiores problemas que já encontrei, e um dos que me proporciona muitas complicações até hoje: os outros. No começo, havia apenas eu mesmo e os outros, que totalizavam doze pessoas, uma enciclopédia — que se transformava em minha nave espacial —, um punhado de brinquedos, um bando de amigos imaginários, exércitos de inimigos imaginários, um rádio e uma TV. Hoje, o número aumentou um tanto e a distinção aprofundou-se bastante — além de fazer muito tempo que não vejo meus amigos imaginários. Considero, agora, que há partes especiais dentro do conceito geral de outros, partes que extrapolam os limites desse conceito: a família, os amigos e os amores. Minha criação cristã aumentou minha tendência natural de dar muito valor aos outros. Aos quatro anos, eu ainda não fazia muita distinção. Havia apenas uma barreira quase intransponível de timidez; e tudo que a ultrapassava era tão importante quanto a maior parte da família. Isso acabou levando-me a pesar demais opiniões de pouco valor, além de confundir valores de opiniões que deveriam ser realmente importantes. Fui lentamente tornando-me uma sombra obediente, que fazia tudo por uma aprovação, só dedicando-me a meus próprios afazeres — que consistiam em inventar aparatos tecnológicos ultra-avançados e nomear todas as minhas coisas de acordo com suas histórias — e tendências naturais em meus momentos autistas, em que eu estava apenas entre meus amigos e inimigos imaginários. Esses momentos foram diminuindo gradualmente, até ocupar apenas cerca de metade de meu tempo (sono incluso). No resto do tempo, eu era apenas uma sombra obediente, com sede de aprovação, sem opinião própria — a opinião estava sempre lá, mas acabava ficando reprimida e restrita a períodos do tempo autista, que passaram a incluir referências mais constantes aos outros.
Aos treze anos, eu era um lamentável espectro deslocado do mundo, porque este só possuía algum lugar para mim enquanto eu elaborava — e às vezes narrava — minhas histórias mirabolantes. A maior parte de minhas relações era extremamente pobre, pois todo meu valor precisava ser atribuído de fora — uma vez que eu não me dava valor algum —, o que resultava, na maior parte das vezes, em um controle tirânico consentido, contra o qual eu só podia reagir em meus momentos autistas — que, à essa altura, contando novamente o sono, ocupavam umas dez horas, sem mais o conforto e o apoio de meus amigos imaginários, que foram deixados de lado em função dos outros.
Aos catorze anos, aconteceu o incidente que me levou ao esforço constante por subverter o valor atribuído aos outros. Pela primeira vez, eu soube — tarde demais e sem ter notado nada por conta própria — que uma moça a quem eu considerava muito bonita e inteligente havia se interessado por mim. No começo de nossa aproximação, quando eu nem imaginava que fosse possível alguém interessar-se por uma sombra sem valor, os colegas de escola, num grande volume, voltaram a atenção para mim — eu que sempre me esforçava por passar despercebido, para não gerar opiniões negativas, uma vez que eu achava inconcebível haver opiniões realmente positivas sobre um espectro quase irreal. Eles a achavam feia. Eles achavam que eu deveria receber todas as humilhações do mundo por estar "namorando" uma garota feia. Na minha cabeça, eu ainda estava há quilômetros de distância de um namoro, e achava injusto que ela (e que eu) sofresse danos e humilhações por algo que, em minha cabeça, tinha muito poucas chances de acontecer — apesar de ser o que eu mais queria. Fui eu mesmo quem causou a ela (e a mim) os maiores danos. Quando eu soube, era tarde demais. Um de meus maiores arrependimentos foi não ter sido capaz — por excesso de timidez e falta de coragem — de nem mesmo tentar reparar esses danos, ou pelo menos preservar o que ainda pudesse existir de nossa proximidade inicial.
Passei a odiar os outros. Dedicava boa parte de meu tempo a insistentemente ostentar, até onde o resto de meus valores cristãos permitia, a bandeira da misantropia, do ceticismo ingênuo, do niilismo despreparado e de tudo mais que pudesse ser usado como uma arma ideológica contra todo o conceito de "outros".
Aos dezesseis anos, descobri que o ódio significava um valor imenso — negativo, mas ainda assim um valor, com todos os seus tributos e gravidades — e que os outros (no conceito mais abrangente, que inclui todos que não são eu) são um espelho. Um espelho onde, de variadas formas, eu vejo a mim mesmo. Quanto mais próximos e mais parecidos eles são comigo, mais eu tendo a enxergar neles — e a negar em mim — os mais variados defeitos. Descobri que é muito difícil conhecer, de verdade, as pessoas, sem falsas projeções. Na maior parte das vezes, sou impedido pelo espelho que me separa dos outros, sem sequer notar eu mesmo refletido nele. Conhecer os outros, para além dessa superficialidade do espelho, requer vários exercícios de autoconhecimento em todos os níveis imagináveis. Devo essas lições a alguns de meus maiores mestres, e considero muita sorte que eu já tivesse, nessa fase conturbada, a capacidade de aprendê-las. Elas levaram-me a descobrir que, ao invés dos outros, eu odiava, na verdade, meu próprio eu: a sombra deformada que eu via agora no espelho que me separava deles.
Foi quase aos dezessete anos que comecei o meu lento caminho de redenção do crime de ter me tornado uma sombra e de, depois, ter me odiado. Ainda encontro-me atravessando esse caminho em muitos aspectos de minha vida. Apenas em alguns consegui concluí-lo, vendo-me ainda perdido, pelo tanto de tempo que permaneci longe de mim, sem saber como eu deveria agir nesses casos. Na maior parte das vezes, minhas tendências ainda restantes de sombra obediente — que agora tento canalizar numa via mais frutífera — me fazem adotar a postura daqueles que considero mais importantes e mais exemplares, das maiores figuras de meu aprendizado e de meu caminho, dentre as quais incluo, além dos mestres, heróis e grandes exemplos — entre outras grandezas que tornaram-se-me indispensáveis —, os colaboradores deste blog, bem como os demais integrantes de meu grupo de amigos de longa data, além de vários de meus familiares com quem mais convivi e, finalmente, todo meu grupo de viagem da última Road Trip. Sempre que não sei ao certo o que fazer, penso no que essas pessoas fariam. A todas elas, vai minha mais profunda gratidão.
Como a mais profunda gratidão é difícil de expressar, podem usar este link: Thank You! Vocês demonstraram de modo pleno um valor que eu não conseguia enxergar em mim.
Na maior parte dos diferentes âmbitos de minha vida, estou apenas começando a voltar a caminhar com minhas próprias pernas, deixar de ser sombra, ter algum valor. O espectro que fui durante tanto tempo ainda me assombra... e, por vezes, a timidez e a falta de coragem, mascaradas pelo cuidado que procuro ter em não prejudicar a existência alheia, impedem-me de fazer o que devia. Devo várias desculpas a muitas pessoas por isso, mas o mais difícil, nesse caso, é perdoar-me. Ainda tento, mais do que deveria, ter cuidado em minhas relações com os outros, principalmente com a parte especial deles, mas, como já dizia o Riobaldo em Grande sertão: veredas, “Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar.”
Apenas recentemente descobri que é melhor dever desculpas por ter pisado no pé de alguém do que ficar eternamente tentando desculpar a mim mesmo por jamais ter dado um passo. Mais uma vez, diria o mesmo Riobaldo em suas histórias, ele que é uma das epígrafes de minha vida, em sua luta por domar o medo: "Viver é muito perigoso [...] A muita coragem, Riobaldo... Se carece de ter muita coragem..."

2 comentários:

  1. Texto gigante pra não perder o costume... ¬¬

    Gosto muito de vc, Bogodes, por isso insisto tanto que vc seja vc mesmo.

    Fico impressionada que vc lembre com essa clareza das fases da sua vida, nunca fiz uma análise desse tipo da minha existência.

    Tenho muitos dos problemas que vc tem, e ainda sou tão criança que necessito da aprovação alheia tanto quanto de carinho e doces.

    Precisamos muito melhorar nesse sentido, para que sejamos felizes e possamos oferecer felicidade aos outros sem tornarmo-nos infelizes no processo.

    Beijo pra vc, meu espelho, deixe as brigas com sombra para o Peter Pan.

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  2. Devo mais um tanto de gratidão pelo comentário, Genza, e também gosto muito de você. Pode visitar o link "Thank you!" da postagem, mais infinitas vezes. =D Você certamente tem ganhado vários níveis com relação a essas coisas, principalmente por conta de eventos como suas decisões relatadas em nossa última conversa. Sempre acreditei que nós ainda vamos encontrar o graal, a arca perdida e o vale encantado; afinal, estamos entre os poucos remanescentes dos que procuram essas coisas antigas, que exigem fidelidade, dedicação e respeito. Vou ver se consigo deixar essas brigas com sombra para o Peter Pan. Um beijo do tamanho do mundo pra você, moça.

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