sexta-feira, março 05, 2010

Subverter os subversores

Faz um bom tempo que ouço falar muito de Marx e de suas teorias, por conta de muita gente dentro e fora das universidades. Vou aproveitar que tenho voltado a ouvir falar um tanto de Marx nos comentários de nosso colaborador Lannart e passar um tanto das minhas opiniões a respeito.
Começo por uma frase do maior conhecedor de Marx cujas aulas já freqüentei: "Quem nunca estudou os 'Grundrisse' jamais deveria considerar que entendeu muita coisa do pensamento de Marx". Esses textos referidos por ele são os rascunhos da obra O capital. Esses rascunhos têm cerca de três vezes o volume de escritos da obra central do pensamento de Marx e parece que não foram ainda traduzidos para o português. Mais importante do que as prerrogativas problemáticas dessa frase, foram as explicações que a seguiram. Elas levaram-me a concluir que eu entendo muito pouco de Marx. Apesar disso, tive contato um pouco maior com um pensador que influenciou Marx muito mais diretamente do que a maior parte dos marxistas gostaria de admitir: Hegel. Mas também entendo muito pouco de Hegel. Porém estudei um bocado, por muitas longas jornadas, das obras de pelo menos três dos pensadores que influenciaram Hegel muito mais diretamente do que a maior parte dos hegelianos gostaria de admitir: Parmênides, Aristóteles e Descartes, em linhagem direta de influências. Seria muita pretensão dizer que entendo muito deles, mas acho que entendi o suficiente para poder expressar algumas opiniões acerca do tataraneto bastardo desses pensadores.
Primeiro, parece que o cerne da teoria de Marx aponta para um movimento de superação natural do capitalismo, inerente à sua própria constituição histórica. Essa é uma herança direta de Hegel, para quem toda e qualquer coisa é uma representação menor de um perfeito absoluto que se aproxima de si mesmo por um movimento de superação composto por três momentos: tese, antítese e síntese — que, por sua vez, é uma nova tese. Sendo assim, o capitalismo é a superação histórica natural de modos de produção mais imperfeitos, que foram superações naturais de outros ainda menos adequados e assim por diante. Como o capitalismo ainda não é perfeito, ele tende a superar-se naturalmente num outro sistema, que Marx chamou de comunismo.
Acontece que, lá pelas tantas, depois de desenvolver, com muita clareza e, diriam os marxistas, perfeição, todas as etapas de evolução natural do capitalismo, aconteceu que Marx teve muita vontade de dar um leve empurrãozinho na história do mundo. Se o Capitão Nascimento fosse contemporâneo e conterrâneo de Marx, teríamos registrado o seguinte discurso histórico, incrementado por muito suor frio: "Eu só gostaria de dizer que vai dar merda isso aí, senhor Marx... Vai morrer gente! senhor Marx..."
Depois de ver tão claramente a estrutura fundamental da economia humana e de sua história, o que é melhor fazer? Minimizar os efeitos negativos dessa natureza? Intervir de modo moderado, consistente e constante, contribuindo para essa evolução natural ocorrer com menores impactos e prejuízos? Não! Vamos criar algo totalmente artificial! Vamos fazer um Cavalo de Tróia obeso, manco e ruim das vistas para invadir o planeta! E, se der merda, bota na conta do Papa. O nome dessa bizarrice sangrenta e medonha é socialismo. A alavanca para empurrar a história, segundo Marx. Uma das maiores aberrações da história humana, segundo muita gente que viveu no leste europeu, ou saiu fugido de lá. Nunca fui defensor ferrenho de qualquer "...ismo". Que o capitalismo, por exemplo, vá catar coquinhos na praia, com sua também grande lista de atrocidades pendurada no pescoço, e deixe as pessoas de bem em paz.
A parte mais violenta das aniquilações do capitalismo ainda estava por vir, mas agora ele contava com a ajuda de mais um maravilhoso "...ismo" para lhe fazer oposição e poder espremer mais um bocado de sangue da humanidade. Seria injusto responsabilizar totalmente um pai pelos crimes que seus filhos cometem depois de crescidos, mas não seria correto deixar de mencionar as devidas influências, inocentando totalmente o maldito tataraneto bastardo de uma linhagem de filósofos. Apoio todas as críticas sensatas a qualquer "...ismo". É muito difícil conceber um "...ismo" como crítica sensata de outro. Uma crítica sensata ao capitalismo é a teoria da evolução histórica dos meios de produção, que Marx elaborou. O comunismo é resultante dessa crítica, como destino do seu predecessor.
É possível dizer que as pessoas teriam se matado igualmente a despeito de qualquer bandeira, porque elas gostam de se matar. Não sou contrário a essa hipótese, mas ela nos dá o direito de dizer que toda e qualquer teoria é completamente irrelevante, porque as pessoas vão continuar levando suas vidas completamente a despeito das teorias, daí jogamos todos os autores de teorias — incluindo Marx — no lixo e fim. Prefiro atentar para o fato de que pessoas também vestem camisas, assumem "...ismos", procuram por fundamentos que considerem plausíveis para balizar suas vidas.
A obra de Marx é muito boa para compreender os fundamentos teóricos que as pessoas com muito dinheiro usam para continuar onde estão, bem como para saber de onde tudo isso veio e pra onde está indo. Ainda há elementos de sobra, no que nos restou do pensamento de Marx, após décadas de interpretações estranhas à manutenção da vida, para se criar soluções e meios de intervenção eficientes e pacíficos. Mas isso ainda é só aperfeiçoar um problema. O comunismo ainda não é perfeito. E nem seus sucessores o serão. A sede de perfeição a qualquer custo continua podendo mascarar um descaminho que está alguns passos atrás na história.
O descaminho tem a ver com o que Parmênides pensou, estipulando uma medida que foi capaz de ser tomada por Aristóteles como um fundamento único para todas as coisas. Descartes posicionou quase inteiramente em nosso pensamento essa forma de ver um só fundamento para a existência. Hegel o concebeu como um absoluto, de certa forma independente de nós, mas que nos gera como uma necessidade para aproximar-se de si mesmo. O cerne do descaminho consiste nisso: ver tudo desde um só fundamento comum. Torna-se possível compreender tudo, ou, na verdade, considerar que, mais uma vez, se compreendeu tudo.
Heráclito, por vezes relegado em decorrência de ser considerado obscuro, escreveu muito bem palavras que diziam, mais ou menos: "A presunção precisa ser apagada mais que o incêndio". Ao procurar um fundamento único para toda história dos meios de produção, Marx acabou presumindo que é possível compreender inteiramente o capitalismo, suas causas e destinos, bem como viabilizar um adiantamento desses destinos, ou um movimento em prol deles.
Desde Parmênides, por um triz, os pensadores não conseguiram esgotar o assunto do pensamento. Por um triz, não se compreendeu de uma vez por todas a realidade. Por um triz... Chegamos tão perto! Algumas dezenas de milhões morreram. Algumas centenas de milhares de bombas explodiram. Várias centenas de desastres naturais aconteceram. Tudo por um triz! Podemos até dizer que o mundo vai continuar a fazer suas maldades a despeito dos pensamentos — e repito: com esse argumento, podemos jogar todo pensamento no lixo, sem sobrar nenhum. Também podemos dizer que as coisas teimam em ter múltiplas determinações quando deveriam ter uma só, mas por que diabos não procuramos explicar as coisas de uma forma mais adequada a elas mesmas? Será tão difícil assumir os próprios limites?
Marx é bom para explicar, por exemplo, o mercado. Mas não é tão bom para nos deixar ver que "o mercado", bem como muitas outras entidades que criamos para nossa própria conveniência, podem ser sacudidas de nossas costas, nos libertando para alguma outra coisa, de preferência mais humana, no bom sentido. Vistas sem muita presunção, nossas criações todas são tentativas mais ou menos tortas de fazer as coisas direito.
Esse texto é fruto de uma pane mental depois de ler e pensar a respeito de textos que envolvem um bom tanto da história de nosso pensamento — filosófico, ocidental. Acabei escrevendo palavras demais num tempo menor que o devido. Revisei uma vez só. Não gostei muito do que vi, mas está à altura de representar minha opinião acerca de Marx e suas idéias. Voltarei a ler. É provável que eu desapareça por um tempo, até terminar de ler e escrever algumas coisas. Mas sem demoras desnecessárias, desta vez.

5 comentários:

  1. Minhas desculpas antecipadas ao Lannart e às suas inclinações marxistas se o texto pareceu mais ofensivo do que devia. As possíveis ofensas voltam-se às consequências negativas de apropriações inadequadas dos pensadores (Marx incluso, apesar de muita gente o considerar não-filósofo, ou quase-filósofo, pelo que usei o adjetivo bastardo), e jamais ao modo como, com algum cuidado, procuramos usá-los para contribuir com uma idéia.
    A intenção é botar lenha na fogueira e malhar Marx um tanto, pra ver se conseguimos fazer algo bom disso.

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  2. Não há qualquer necessidade de desculpas Éder. Eu sou adepto da máxima de Tancredo Neves: "Não são os homens, mas as idéias que brigam." Mesmo prq, como vc mesmo disse, vc estudou os filósofos que foram a base da formação de Marx. Além do mais, meus conhecimentos em filosofia são parcos, tenho consciência. Até mesmo sobre Marx, de quem me aproprio de muitas ideias, conheço muito pouco.

    Sendo assim, não me considero marxista e acho que jamais chegarei, nem pretendo, a me tornar um. Não que eu ache que seja errado quem o é, apenas discordo de alguns pontos sobre o que disse Marx. Ainda penso sua teoria explica muita coisa da realidade, dos dias idos e atuais, mas já não é mais capaz de modificá-la.

    E nem nunca foi. Para mim, um dos maiores erros que Marx cometeu foi chamar a tal da revolução socialista de "Ditadura do Proletariado". Fora o determinismo histórico (superação natural do capitalismo) presente na teoria marxiana, assim como também na marxista. Não sei ao certo, mas isso é herança de Hegel. Acho que vc confirmou isso no seu texto.

    O que destaco do que vc disse é "consequências negativas de apropriações inadequadas dos pensadores". Isso aconteceu em toda a nossa história e continuará acontecendo. Com Marx não foi diferente. Situando o contexto no leste europeu, com Lênin, influenciado diretamente por Marx no desenvolver de suas idéias, presenciamos a Revolução Russa ser subvertida por Stálin. Com a morte de Lênin, perdeu-se o rumo da revolução, mergulhando a Rússia numa ditadura covarde e mentirosa. Tudo que foi praticado após a morte de Lênin, também enquanto ele ainda estava vivo, mas muito doente, vai totalmente contra as teorias comunistas de Lênin e de Marx.

    Da mesma forma, muitos outros pensamentos foram subvertidos em benefício de uma minoria privilegiada. A teoria iluminista com a posterior revolução francesa, tiveram seus princípios adotados pelo liberalismo, que os subverteu. Individualismo/egoísmo passou a ser sinônimo de liberdade. Já discutimos isso com o texto do Pulha sobre Rand. As idéias dela são legais, subvertidas, vão legitimar e justificar a exploração que já impera.

    Não entro na defesa de ismos. Apesar do meu discurso se aproximar muito do socialismo. Mas não o sou, não ainda. Se alguém disser: "Sai do muro!" Aí eu diria que pretendo me tornar um liberal-socialista. Quem sabe.

    A verdade é que não existem sistemas ou teorias perfeitas enquanto o ser humano for falho. Daí caímos no que vc repetiu algumas (duas?) vezes: "jogamos todos os autores de teorias — incluindo Marx — no lixo e fim." Não. Não jogamos. Continuaremos discutindo e discutindo e tentando nos aperfeiçoar cada vez mais. E tentando transpôr essas teorias para a realidade. Lamento pela revolução russa ter tomado o rumo que tomou e lamento mais ainda não poder saber exatamente o que acontece em Cuba.

    No último parágrafo, eu não concordo com o que vc colocou. Marx tenta, justamente, nos libertar do mercado para alguma outra coisa mais humana.

    Mais um comentário gigante!! Hahahahahahaha!!

    Abraço!!

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  3. Hoje, num momento de crise de enxaqueca, tive paciencia de ler o post gigante e o comentario gigante.

    Dentro dos meus infimos conhecimentos de filosofia ou teorias de modelo de vida, eu acredito no que dizia meu professor de historia do terceiro ano do segundo grau:

    "Eu sou anarquista, mas prefiro libertario."

    Nao precisariamos de Estado ou Lei se cada um soubesse fazer as coisas sem prejudicar o outro. Se nao houvesse lei, eu agiria basicamente da mesma forma que ajo hoje.

    Mas sei que isso eh uma utopia, pois a humanidade tem algo de ruim e egoista dentro de si, Sempre.

    Eh isso que faz as "consequências negativas de apropriações inadequadas dos pensadores", como aconteceu com os messias que simplesmente pregavam o amor, imagina entao com quem tem opinioes mais polemicas.

    Beijo de quem ama todos vcs, mas nao ama tanto assim a filosofia.

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  4. Muito bom comentário, inclusive.
    Realmente, nunca o considerei marxista. O que não gostaria de ter feito — e fico feliz em não ter feito de fato — era contrariar inclinações suas a saber a respeito das idéias de Marx, justamente por considerar que você tem bom-senso ao se apropriar de boas idéias, exceto talvez em algumas discussões inflamadas — e dependendo do entusiasmo o bom-senso diminui — com o pulha do Alex, que sempre tenta usá-las contra você... hehe
    É exatamente para o fato de que as teorias não são perfeitas que eu tento apontar o tempo todo. E também para o fato de que usamos essas teorias imperfeitas, mesmo que com os melhores interesses e da melhor forma que pudermos, novamente de um modo sempre também imperfeito. E no ponto de apropriar-se de idéias de Marx, nós nem mencionamos os malditos chineses (hehe), provavelmente para não estender as coisas ainda mais. Continuo também acreditando que continuaremos, enquanto civilização humana, discutindo e tentando chegar a meios mais perfeitos de se apropriar de idéias. Temos também muitos bons exemplos bem-sucedidos (Gandhi, pra começar) de boas apropriações.
    A respeito do último parágrafo, eu pretendi justamente no texto todo dizer que, por conta da "ditadura do proletariado" (e das bisonhices acontecidas em suas desastrosas apropriações históricas), considerei Marx como trocar um erro por outro. O que eu não teria dito se, através do esclarecimento do mercado e dos demais fundamentos do capitalismo (que ele de fato fez), Marx tivesse proposto uma outra forma de intervenção que jamais pudesse ter a ver, por exemplo, com ditadura, ou qualquer outro modo problemático. Posso ser acusado de querer fazer omeletes sem quebrar ovos por causa disso, mas o que não quero realmente é quebrar as mãos e fazer omeletes de sangue humano com ossos moídos.
    Eu ia dizer de muitas outras esquisitices advindas de boas idéias (o cristianismo, por exemplo), mas isso ia fazer um texto ainda mais extenso, com o que resolvi apontar para o problema só a partir de Marx. O problema nunca foi Marx, mas justamente o que nós fazemos com as boas idéias dele. Eu realmente poderia ter deixado isso mais claro no último parágrafo, dado que não tive muita preocupação em fazer um texto pequeno desde o começo.
    É isso. Agora vou continuar imaginando como diabos vocês não gostaram de uma Baden Baden. Era a Stout ou a Bock? Eu teria matado a garrafa, seus pulhas! \o/

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  5. Vou mais uma vez me desculpar com a Genza pelo comentário dela só ter sido conjurado para minha tela agora. Desculpe, genza; talvez o blogger seja adventista e não trabalhe aos sábados. Admiro a sua paciência pela leitura, principalmente apesar da enxaqueca.
    Faz já um tempo, discuti longamente sobre a necessidade das leis com um defensor fervoroso delas. Minhas opiniões costumam ser muito semelhantes às suas e, nesse caso, também às de seu professor do terceiro ano do segundo grau. Meu argumento final pareceu muito com o que você disse a respeito da ruindade humana. Defendi que leis não vão impedir que as pessoas façam o mal e que elas costumam servir apenas para selecionar as pessoas que podem fazê-lo. Também defendi o tanto de coisas boas que pode haver na natureza humana. Somos capazes de fazer qualquer anjo ou demônio ter inveja do nosso potencial infinito para bondade ou maldade.
    Como você sempre diz (e mais um de seus bons professores ensinava): nenhuma regra prevê o tanso! Por mais bem-intencionado que fosse o manifesto comunista de Marx, nenhuma de suas elucidações previa os malditos stalinistas, por exemplo.
    Eu prefiro continuar acreditando na possibilidade de nos tocarmos das besteiras que fazemos antes da terra nos sacolejar completamente de sua superfície. Sou otimista e propenso a utopias, além de não costumar ser muito sensato. Perfil totalmente loser. hehe
    É muito bom saber que você nos ama, apesar da filosofia. Nós te amamos por isso. =D

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