sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Insignificância

Era um dia como outro qualquer. Um dia comum e ordinário de uma vida ainda mais insignificante, em um mundo muito menos importante. Mais um dia vivendo numa sociedade muito pouco preocupada com o futuro e completamente vidrada nas futilidades e na vida alheia. Nosso homem ia vivendo em meio a tudo isso. Tudo que era quase nada. Quem se importava? Nosso homem se importava. Mas quem se importava com ele, que era um entre tantos anônimos por esse mundão afora?


Como tantos outros anônimos, nosso homem trabalhava duro. Sempre ouviu dizer que com empenho e bastante estudo seu sucesso seria garantido. E foi o que ele fez. Pós graduações, MBAs, mestrado e um doutorado em andamento na área de engenharia. Claro. A engenharia é o futuro. Sempre havia acreditado que eram as pessoas, mas agora sabia que não. Pós doutores disseram isso pra ele. Só não disseram que essa história de sucesso era apenas um conto da carochinha. Mas eles tinham um bom motivo. Nunca tiveram esse sucesso. E nem reclamavam disso. Porque que mais um haveria de se preocupar ou ficar chateado? Ele aprenderia. A vida ensina. A não ser engenharia.


Até que o salário não era de se reclamar. Difícil era ter que aturar as cobranças da chefia exigindo produção. O problema era que, estar confinado dentro de uma sala com pranchetas, réguas, compassos e computadores não proporcionava um clima que combinasse com "quebra de recordes". De mais a mais... Quem dá valor a uma pilha grande de papéis? As pessoas querem edifícios, shoppings, carros, pontes e tudo o mais! Quem se importa com papéis mesmo que sejam formato A3? Os livros que já foram símbolo de conhecimento, hoje, nem mesmo com as belíssimas capas com desenhos 3D e iluminuras no início de cada capítulo seduzem as pessoas à leitura. Nosso homem era considerado praticamente uma aberração por gostar tanto de livros.


E nosso homem gostava muito mesmo de livros. Lia o tempo todo e em todo lugar onde fosse possível. Andava de ônibus sempre com um livro na mão e os fones no ouvido numa tentativa de não ser interrompido. Mas as pessoas sempre interrompiam. Pregadores fervorosos vomitavam palavras de nosso senhor, vendedores de bala prometiam um hálito refrescante, drogados, doentes e bandidos pediam uma ajuda e... SEMPRE! Sempre havia alguém para conversar sobre o mau tempo ou sobre aquele político safado que roubava seu dinheiro e nunca fazia nada. O livro na mão e o fone no ouvido o tornavam o cara mais atraente e interessante para se ter uma conversa dentro do transporte coletivo. As pessoas não conseguiam resistir e mesmo sendo completamente ignoradas, continuavam.


A vida nos livros era sempre muito melhor. Mundos fantásticos, magia, telepatia, guerras épicas e conquistas gloriosas! E o mundo...? O mundo de verdade estava muito doente. Mesmo pessoas que se empenharam bastante e estudaram mais ainda passavam fome ou viviam da renda de sub-empregos. Grandes milionários brincavam com a economia sabendo que se perdessem, seriam socorridos pelos cofres do Estado, enquanto trabalhadores teriam seus salários reduzidos a metade. A violência nas ruas aumentava a cada dia, a cada hora! Ninguém conseguia entender que se um mundo maravilhoso é prometido e na verdade resta apenas decepção e miséria para os menos privilegiados, isso se converte em ódio, revolta e em desejo por vingança. Assaltos, sequestros, assassinatos, golpes, estupro, corrupção, terrorismo... GUERRA! Guerra por dinheiro! Guerra religiosa! Guerra motivada por preconceitos e arrogância! Guerra apenas pela guerra e desejo de morte...


A vida andava mesmo muito ruim e o mundo cada vez mais destruido. Apenas se você fosse um dos que se beneficiavam com toda a miséria e destruição ou fosse completamente insensível ou cego para tudo isso é que não se sentiria mau. Nosso homem se sentia muito mau. Era impossível estar indiferente ao que acontecia em seu redor. Mas a apatia... a apatia diante de toda essa desgraça era o que mais o incomodava. Isso o tirava do sério.

De repente, o surto.

Imagine algo como acontece em "Um dia de fúria" com proporções "titanicticas" e os exageros de Tarantino. Foi um pouco pior do que isso. Toda pessoa que aparecia comentando sobre o novo Big Brother era derrubada com um jab direto cruzado bem no queixo. Nosso homem fazia questão de acordar sua (dela própria) vítima antes de iniciar o "processo de verificação de humanidade". Ele próprio criou esse termo depois de descobrir que algumas pessoas não eram, na verdade, pessoas. Elas eram como zumbis só que sem o lance das feridas e pedaços de carne podre caindo pelo chão. Ao invés de "Mióoolos..." elas gruniam "Compráaar..." ou "TV... telefone... minha cáaaasaaa...". O processo consistia em abrir o peito da pessoa com uma moto-serra para tentar localizar o coração.


Mas, mesmo possuindo um coração, ainda poderia não ser uma pessoa de verdade. Corações se corrompem. Há quem diga que já nascem abarrotados de mals sentimentos. Feito isso, abria-se também a cabeça para verificar se ali havia um cérebro de verdade. Se no lugar do cérebro houvesse um Big Mac... Bingo! Não era uma pessoa de verdade. Diante dessa confirmação nosso homem decaptava o "zumbi" com uma katana. Claro. Uma katana. É muito mais classudo.



Muito tempo se passou...

Certa vez, nosso homem teve certeza de que encontrou uma pessoa de verdade. Parecia um coração de verdade. Mas antes de chegar ao cérebro e ter a certeza de que era mesmo, a pessoa já havia desencarnado. Um tanto desconcertado, e envergonhado, acabou deixando o cérebro intacto e a cabeça no lugar. Dessa vez não pôde cumprir o figurino e colocar sua katana para cantar.

Até que tentou fazer um enterro digno. Ele queria de verdade. Mas sequer lembrava de como poderia fazê-lo. Resolveu queimar o corpo. Enquanto assistia, pareceu ver algo, um vulto de uma pessoa sorrindo e se despedindo antes de se dispersar em direção aos céus.

Nosso homem seguiu seu caminho. Tinha uma pequena, mas bem pequena mesmo, e nova esperança de conseguir encontrar e identificar uma pessoa de verdade antes de ter que abri-la. Ele sabia que seria difícil.

4 comentários:

  1. AMEI O CONTO!!! De verdade!

    Algumas pequenas correções linguísticas:
    "Certa vez, nosso homem teve certeza DE que encontrou uma pessoa de verdade."
    "Dessa vez não PÔDE (não sei se caiu o acento, na verdade) cumprir o figurino e colocar sua katana para cantar."
    "Enquanto assistia, pareceu ver algo, um vulto de uma pessoa sorrindo e se despedindo antes de se DISPERSAR em direção aos céus."

    É o tipo de conto que todos deveriam ler, tem uma história consistente, senso crítico e uma sutileza poética no uso da palavra Mau (se sentia mau; como malvado e não como o contrário de bem)pela qual me apaixonei!

    Um beijo pra ti, continue escrevendo!

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  2. O conto está perfeito até o surto. Não sei o que lhe aconteceu depois, mas me pareceu que a coisa desandou um pouco. Coincidentemente, as sugestões de adequação à norma culta propostas pela Gôrda localizam-se, todas, depois do surto. Complementando essas boas sugestões da Gôrda, acho que o "mal" não tem plural, mas o "mau" tem. Achei excelente a virada de direção e de sentido causadas pelo surto, mas não consegui ver as coisas com a mesma intensidade a partir daí.
    A pior coisa para se medir uma obra de arte é a crítica, mas como nós somos seu público e vamos acabar dizendo alguma coisa, digo que achei o conto excelente, e sim, ele é uma obra de arte.

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  3. Valeu Genza pelas correções! A atenção sempre falha, por mais que se corrija o texto.

    Obrigado!

    Beijos!

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  4. Bogodelhos! Depois eu volto e leio de novo seu comentário! Agora é apenas para dizer que estou atento e dei importância, ao seu e ao da Gôrda! =D Eu pretendia lapidá-lo, mas essas eternas correções e revisões o deixariam na "gaveta". Mas que bom que gostaram mesmo assim!

    Abraço!

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